Quando
eu soube pela minha amiga Sheila que um grupo iria para o Quênia
fazer trabalho voluntário, uma inquietação tomou conta de mim. Eu
não tinha exatamente todo o dinheiro para ir, mas sabia que tinha
que ir. Juntei, pedi, organizei e, num misto de ansiedade, medo e
vontade, disse sim. Logo depois eu quase me arrependi, achei que não
iria dar conta, mas respirei fundo, repensei e fui. E fui.
Éramos
13: 5 homens 8 mulheres, de 21 a 31 anos, diversas profissões,
diversos tipos. Cada um estava ali por um motivo bem próprio, mas
nenhum de nós sabia o que nos esperava.
Nos
encontramos no aeroporto às 21horas do dia 17 de dezembro. Eu
conhecia apenas a Sheila e mais uma menina que tinha ido comigo para
Israel. Rolaram alguns encontros antes da viagem, mas foram todos em
São Paulo e eu não pude ir a nenhum. Fizemos check inn e lá fomos
nós. Depois de 7horas de viagem, das quais dormi o tempo inteiro
sobre o efeito do meu querido comprimido Frontal pré voo, paramos
no Togo onde embarcaram mais pessoas no avião. Mais 5 horas e
descemos na Etiópia, onde tiraram nossa temperatura antes de
entrarmos no aeroporto. Duas horas de espera e o Frontal já não
fazia mais efeito, então... cerveja e comida etíope, mais um voo de
quase 2horas, com vinho, conversas filosóficas e questões sobre o
que faríamos nessa jornada louca. E finalmente chegamos a Nairóbi,
Quênia, onde novamente tiraram nossas temperaturas e tivemos que
entregar um pequeno questionário sobre nossa saúde. Ebola free:
podemos adentrar o país.
Jimmy,
o responsável pelo nosso voluntariado, nos buscou no aeroporto. Já
era madrugada do dia 19 e ele nos levou para o apartamento que
ficaríamos hospedados em Nairóbi. 3 quartos e 1 banheiro para 13
pessoas. Rolou um momento de pânico. Arrumamos uma mala menor,
tomamos banho e seguimos mais 5 horas para o Safari. Acho que
passamos uns 2 dias só nos transportando e comendo. O Safari
era no Massai Mara National Reserve, um parque gigante com todos os
animais da savana vivendo ali em seu habitat natural, na divisa entre
Quênia e Tanzânia.
Chegamos
ao hotel, que tinha umas tendas estilo militar para dormimos, mas
todas com banheiro dentro e super confortáveis. Organizamos a
divisão dos quartos e fomos correndo para o parque ver os bichos.
Nossos motoristas eram incríveis, entendiam tudo dos animais e
plantas, e tinham olhos de lince, pois viam os animais mesmo que eles
estivessem camuflados. Conseguiram, no primeiro dia, achar leões e
uma cheeta comendo um gnu, cena surreal e incrível, que já deu a
noção de como funciona a cadeia alimentar. À noite, exaustos,
apenas dormimos, cobertos pela rede de mosquito.
Segundo
dia, foi safari o dia inteiro. Os motoristas têm um rádio à moda
antiga no carro e vão falando entre si, para ver quem achou que
bicho e onde. É impressionante como eles conhecem o parque e se
localizam no meio daquela savana. Leões, elefantes, girafas,
rinocerontes... Ficamos cara a cara com um búfalo, que ensaiou um
ataque ao nosso carro; batemos o carro numa árvore onde estava um
leopardo que tinha acabado de se alimentar de uma zebra e a perna
desta balançava, presa num galho (medo); vimos um leão correr atrás
de um pumba enquanto nosso motorista estava fora do carro e ele
voltou correndo amedrontado; vimos leões fazendo amor numa
lindíssima cena; demos maçã para um babuíno; andamos na beira de
um rio cheio de hipopótamos e crocodilos, na fronteira com a
Tanzânia . Em um dado momento nossos motoristas pararam o carro,
tiraram uma grande toalha e pequenas lunch boxes para fazermos um
piquenique embaixo de uma árvore com zebras passando atrás. Foi
mágico!
Fim
de tarde, visitamos a tribo dos Massai. Eles nos contaram sobre sua
história e tradições, dançaram, cantaram. Num dado momento,
separaram nosso grupo em duplas e cada dupla, acompanhada por um
massai, adentrou uma casa. Lá conversarmos mais intimamente sobre o
funcionamento da Tribo. Foi um momento um pouco estranho. A porta da
casa é baixa e o interior é bem escuro. O primeiro quarto é para
um pequeno bezerro, pois as vacas tem grande valor entre os Massai,
quanto mais vacas, mais ricos. Eles inclusive trocam mulheres por
vacas, então, se o rapaz quer casar, ele "compra" sua
esposa por 10 vacas. Continuamos por um pequeno corredor escuro,
muito escuro, no qual fiquei com um pouco de medo e segurei na mão
da minha dupla. Chegamos numa sala/quarto/cozinha onde estava um
senhor bem velho, cheio de colares e alargadores, e uma moça com um
neném. O nosso guia nos explicou o funcionamento das casas, que têm
apenas uma mínima janela para não entrar insetos, um pequeno
fogareiro, e até um canto que eles denominam como quarto de
hóspedes, onde fomos gentilmente convidados a dormir. O rapaz falou
e falou; a moça com a criança e o velho, os verdadeiros moradores
da casa, ficavam lá, só nos olhando. E nós nos sentindo
observadores demais. Até que, numa hora, nosso guia massai me
perguntou sobre minhas tatuagens, como eram feitas, se doía, e me
mostrou a dele. Travamos uma bela conversa sobre o assunto, cada um
contando como são feitas as tatuagens e como são escolhidos os
desenhos em suas respectivas culturas, e ali senti uma bonita troca.
Foi um momento de certo alívio. Logo após isso, o rapaz nos
ofereceu insistentemente alguns objetos de artesanatos para
comprarmos e, dessa forma, ajudarmos na construção da escola. Eu e
minha dupla entramos numa superconversa sobre o assunto, pois
estávamos nos sentindo um pouco intimidados. Acabamos comprando duas
peças, pelas quais nos apaixonamos, e saímos da casa para
encontrarmos o grupo, que estava se esbaldando em compras na feirinha
da tribo. Os Massai nos levaram a pé até nosso hotel e, no caminho,
um deles bem novo foi chutando uma garrafa pet. De repente, um jogo
de futebol estava armado! Dois times, um de nós e um massai em cada
time, e os poucos que passavam pela pequena estrada no meio da savana
paravam para assistir ao jogo. Futebol faz sucesso com os moços da
tribo! Foi uma cena linda, com o por do sol ao fundo e uma nuvem
densa e negra se aproximando. Nos despedimos deles calorosamente.
Eles nos ofereceram a cerveja que fabricam artesanalmente, mas
ninguém teve coragem de beber.
À
noite, fizeram uma fogueira no hotel e sentamos em volta cantando e
conversando, nós 13, um dos nossos motoristas e um rapaz que
trabalha no hotel. Ensinamos músicas para eles e eles para nós.
Cantamos em português, em swahili e em inglês. E eles conheciam e
cantavam perfeitamente Michel Teló! Rimos muito. Quando fomos
dormir, o gerador já estava desligado e caminhamos para os quarto
num breu total, apenas com a luz da lua e das lanternas dos
celulares, que não eram muito potentes.
Acordamos
e decidimos fazer um safari de barco, que nossos motoristas tinham
indicado. Saímos cedo para dar tempo, pois o safari fica perto de
Nairóbi, a 5h de carro de onde estávamos. Pegamos a estrada e, de
repente, ouvimos muitas mensagens no rádio do carro. O motorista,
com uma expressão um pouco preocupada, parou no acostamento, onde já
estava parado o nosso outro carro. Os motoristas, tensos, falavam em
swahili entre si, e nós tentando entender o que se passava no meio
daquela estrada deserta. E eis o que se passava: um elefante matou um
Massai, os Massai se revoltaram e fecharam as estradas, pedindo algo
para o governo, que nenhum de nós compreendeu muito bem o que era,
talvez pelo sotaque queniano, que a gente ainda não entendia
perfeitamente. Perguntamos se não podíamos quebrar o bloqueio. Os
motoristas foram categóricos, dizendo que os Massai ficavam
agressivos e nunca se sabe o que podem fazer quando ficam assim.
Medo. O que fazer? Voltar para o hotel e esperar passar? Não. Eles
já tinham acionado pelo rádio um amigo, que veio de moto para nos
resgatar e nos guiar por estradas alternativas. Seguimos então a
motoca por caminhos no meio do nada, num agreste queniano, paisagens
vastas, muita poeira, e a viagem que duraria apenas 5 horas, durou
umas 7. Perdemos o safari no barco.
Paramos
para almoçar e, na porta do restaurante, conhecemos um grupo de
crianças fofas. A única menina do grupo logo me chamou atenção.
Os meninos nos olhavam com um sorriso bobo no rosto, e ela não.
Olhava séria, observadora e atenta. E também um pouco desconfiada.
Linda. De vestido amarelo e rosa. Eu acenei com a mão, ela só
olhou; eu acenei de novo, ela continuou olhando; eu insisti e fiz uma
brincadeira; ela sorriu e veio até mim. Olhou fixo para minha
tatuagem e quis tocar; eu disse vai em frente e ela fez carinho nos
meus pássaros e na minha árvore; e eu fiz carinho no rosto dela e
ela no meu braço, e eu no rosto dela, e assim travamos uma bonita e
sincera comunicação, sem falarmos uma palavra. Fomos embora, mas
fiquei marcada por aquele olhar desconfiado e profundo da menina
linda de cabelos raspados. E chegamos em Nairóbi.